O relato de um espírito viciado - o espírito gastrônomo

Concluindo a trilogia de textos falando sobre os vícios, trago para vocês este relato que sempre achei fantástico por seu nível de detalhes. É o relato de um espírito viciado em comida, que narra suas sensações e seus sofrimentos.

"Revista Espírita, novembro de 1860

(Sociedade Espírita de Paris, 16 de outubro de 1860)

BALTHAZAR OU O ESPÍRITO GASTRÔNOMO.

Numa reunião espírita particular, um Espírito se apresentou espontaneamente, sob o nome de Balthazar, e ditou a frase seguinte por pancadas:

"Eu gosto de comida e das belas; viva o melão e a lagosta, a meia xícara e o cálice!"

Pareceu-nos que semelhantes disposições, num habitante do mundo invisível, poderia dar lugar a um estudo sério, e que se deveria poder tirar dele um ensinamento instrutivo sobre as faculdades e as sensações de certos Espíritos. Era, ao nosso ver, um interessante assunto de observação que se apresentava por si mesmo, ou melhor ainda, que talvez tivesse sido enviado pelos Espíritos elevados, desejosos de nos fornecer meios para nos instruir; seríamos, pois, culpados disso, não aproveitando. É evidente que esta frase burlesca revela, da parte desse Espírito, uma natureza toda especial, cujo estudo pode lançar uma nova luz sobre o que se pode chamar a fisiologia do mundo espírita.

Por isso a Sociedade acreditou dever evocá-lo, não por um motivo fútil, mas na esperança de nele encontrar um novo objeto de estudo.

Certas pessoas crêem que nada se pode aprender senão com o Espírito dos grandes homens: é um erro. Sem dúvida, só os Espíritos de elite podem nos dar lições de alta filosofia teórica, mas o que não nos importa menos é o conhecimento do estado real do mundo invisível. Pelo estudo de certos Espíritos, conhecemos de alguma sorte a natureza sobre o fato; é vendo as feridas que se pode encontrar o meio de curá-las. Como nos daríamos conta das penas e dos sofrimentos da vida futura, se não víssemos Espíritos infelizes? Por eles compreendemos que se pode sofrer muito sem estar no fogo e nas torturas materiais do inferno, e esta convicção, que o espetáculo da baixa população da vida espírita dá, não é uma das causas que menos contribuíram para reunir os partidários da doutrina.

1. Evocação. - R. Meus amigos, eis-me diante de uma grande mesa, mas nua, ai de mim!

2. Esta mesa está nua, é verdade, mas quereis nos dizer para que vos serviria se estivesse carregada de comidas; que farias delas? - R. Delas sentiria o perfume, como outrora sentia-lhe o gosto.

Nota. Esta resposta é todo um ensinamento. Sabemos que os Espíritos têm as nossas sensações e que percebem os odores tão bem quanto os sons. Na falta de poder comer, um Espírito material e sensual se repasta na emanação das comidas; ele as saboreia pelo odor como, quando vivo, o fazia pelo sentido do gosto. Há, pois, alguma coisa de verdadeiramente material em seu prazer; mas, como em definitivo há mais desejo do que realidade, esse prazer mesmo, estimulando os desejos, torna-se um suplício para os Espíritos inferiores, que ainda conservaram as paixões humanas.

3. Falemos muito seriamente, eu vos peço; o nosso objetivo não é, de nenhum modo, a diversão, mas nos instruir. Consenti, pois, em responder seriamente às nossas perguntas, e, se for preciso, vos fazer assistir por um Espírito mais esclarecido, se isso for necessário.

Tendes um corpo fluídico, nós o sabemos; mas dizei-nos se, nesse corpo, há um estômago? - R. Estômago fluídico também, onde só os odores podem passar.

4. Quando vedes comidas apetitosas, sentis o desejo de comê-las? -R. Comê-las, ai de mim! eu não o posso mais; para mim essas comidas são o que são as flores para vós: vós as sentis, mas não as corneis; isso vos contenta; pois bem! eu estou contente também.

5. Isso vos dá prazer em ver os outros comerem? - R. Muito, quando ali estou.

6. Sentis a necessidade de comer e de beber? Notai que dizemos a necessidade; ainda há pouco dissemos o desejo, o que não é a mesma coisa. - R. Necessidade, não; mas desejo, sim, sempre.

7. Esse desejo é plenamente satisfeito pelo odor que aspirais; é para vós a mesma coisa de que comêsseis realmente? - R. É como se vos perguntasse se a visão de um objeto, que desejais ardentemente, substitui para vós a posse desse objeto.

8. Pareceria, segundo isso, que o desejo que sentis deve ser um verdadeiro suplício, não podendo ter o gozo real? - R. Suplício maior do que credes; mas trato de me atordoar em me iludindo.

9. Vosso estado me parece bastante material; dizei-nos se dormis algumas vezes? - R. Não; eu gosto de vadiar um pouco por toda a parte.

10. O tempo vos parece longo? Aborrecei-vos algumas vezes? - R. Não, percorro os mercados, as feiras; vou ver chegar o peixe fresco do mar, e isso me ocupa bem e muito.

11. Que fazíeis quando estáveis sobre a Terra?

Nota. - Alguém disse: sem dúvida era cozinheiro. - R. Guloso, não glutão; advogado, filho de guloso; neto de guloso; meus pais eram fazendeiros generosos.

O Espírito, respondendo, em seguida, à reflexão precedente, acrescenta: Bem vês que eu não era cozinheiro, não te teria convidado para os meus almoços, tu não sabes nem beber nem comer.

12. Faz muito tempo que estais morto? - R. Há uma trintena de anos; há oitenta anos.

13. Vedes a outros Espíritos mais felizes do que vós?- R. Sim, vejo que fazem consistir a sua felicidade em louvar a Deus; não conheço isso ainda, meus pensamentos roçam a terra.

14. Dai-vos conta da causa que os tornam mais felizes do que vós? - R. Eu não as aprecio ainda, como aquele que não sabe o que é um prato rebuscado, não o aprecia; isso talvez virá. Adeus; vou à procura de uma pequena sopa bem delicada e bem suculenta.

BALTHAZAR.

Nota. - Esse Espírito é um verdadeiro tipo; faz parte dessa classe numerosa de seres invisíveis que não se elevaram, de nenhum modo, acima da condição da humanidade; não têm de menos senão o corpo material, mas as suas idéias são exatamente as mesmas. Este não é um mau Espírito, não tem contra ele senão a sensualidade que é, ao mesmo tempo, para ele, um suplício e um prazer; como Espírito, não está, pois, entre os infelizes, é mesmo feliz à sua maneira; mas Deus sabe o que o espera numa nova existência! Um triste retorno poderá fazê-lo muito refletir, e desenvolver nele o senso moral, ainda abafado pela preponderância dos sentidos."

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